A Teologia de São Francisco de Assis: Um Caminho de Humildade, Pobreza e Amor à Criação | Artigo


A Teologia de São Francisco de Assis: Um Caminho de Humildade, Pobreza e Amor à Criação.


Card. Pietro Ferraz


A teologia de São Francisco de Assis (1181–1226) é uma das expressões mais autênticas do seguimento radical de Cristo na história da Igreja. Fundador da Ordem dos Frades Menores (Ordem Franciscana), São Francisco propôs um estilo de vida profundamente enraizado na humildade, na pobreza e no amor à criação. Seu testemunho continua a inspirar tanto a espiritualidade cristã quanto o pensamento teológico. Neste artigo, exploraremos os principais pilares da teologia franciscana, com base nas Escrituras, em teólogos franciscanos e em documentos da Ordem Franciscana.


1. O Encontro com Cristo Pobre e Crucificado


A centralidade de Cristo na vida de São Francisco é o ponto de partida de toda a sua teologia. Para ele, a pobreza de Cristo foi uma expressão máxima do amor divino. Francisco encontrou Cristo nos pobres, nos leprosos e na cruz, e foi ali que sua espiritualidade foi profundamente transformada. O episódio crucial em sua conversão é o encontro com o Cristo Crucificado na igreja de São Damião. Francisco escutou a voz de Jesus pedindo que ele restaurasse Sua igreja: "Francisco, vai e reconstrói a minha casa, que como vês está em ruínas" (cf. Testamento de São Francisco, 1206). Esse chamado marca o início de sua jornada de imitação radical de Cristo, que culmina na renúncia de todos os bens materiais.


Na teologia franciscana, Cristo é visto como o centro de toda a criação, e Sua encarnação é uma expressão profunda do amor de Deus pela humanidade. Francisco encontrou na cruz a máxima revelação do amor de Deus, como está escrito em Filipenses 2,7-8: "Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz."


O teólogo franciscano São Boaventura, sucessor espiritual de Francisco, desenvolveu essa compreensão cristológica ao afirmar que Cristo é o "Verbo Encarnado", cujo sacrifício é a chave da reconciliação entre Deus e a criação. A partir de Cristo, a teologia franciscana desenvolve uma espiritualidade que valoriza a encarnação, o sofrimento redentor e a humildade de Jesus.


2. Pobreza Evangélica: A Liberdade em Cristo


A pobreza evangélica é um dos pilares fundamentais da teologia de São Francisco. Para ele, a renúncia dos bens materiais não era um simples gesto de desapego, mas uma forma concreta de imitar Cristo, que se fez pobre para nos enriquecer espiritualmente. A pobreza é vista como um caminho para a verdadeira liberdade interior. Francisco acreditava que o acúmulo de riquezas e a busca pelo poder eram obstáculos à vivência plena do Evangelho. Ele pregava que os frades deviam viver "sem nada de próprio", ou seja, sem bens materiais, confiando unicamente na Providência de Deus. Essa confiança é fundamentada nas palavras de Cristo em Mt 6,25-26: "Não andeis preocupados com a vossa vida, pelo que haveis de comer ou de beber, nem pelo vosso corpo, pelo que haveis de vestir... Olhai as aves do céu, que não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros, e, no entanto, o vosso Pai celestial as alimenta."


O amor pela pobreza também refletia a imitação de Cristo, como destacado por São Boaventura em seus escritos sobre Francisco. Para Boaventura, a pobreza de Francisco não era apenas uma rejeição material, mas uma "pobreza de espírito", um estado de total dependência de Deus. Esse estado interior permitia a Francisco e seus seguidores verem o mundo com os olhos de Cristo, especialmente os mais pobres e marginalizados. A encíclica "Fratelli Tutti", do Papa Francisco, inspirada diretamente no exemplo do santo, reforça essa dimensão ao clamar por uma fraternidade universal baseada no amor ao próximo, independentemente de suas condições sociais ou econômicas.


3. Amor à Criação: A Fraternidade Universal


Um dos aspectos mais marcantes da teologia franciscana é o profundo amor de São Francisco pela criação. Ele via todas as criaturas como irmãs e irmãos, parte da grande fraternidade cósmica que reflete a bondade e a glória de Deus. Em seu Cântico das Criaturas, Francisco louva a Deus por todas as obras da criação, chamando o sol de "irmão" e a lua de "irmã". Para ele, a criação não era apenas um cenário para a vida humana, mas uma manifestação do amor de Deus.


Essa visão ecológica foi posteriormente aprofundada por teólogos franciscanos, como João Duns Scotus, que via na criação um reflexo da bondade divina. Scotus desenvolveu a ideia de que todas as coisas criadas têm uma dignidade inerente, porque foram criadas por Deus e existem para glorificá-Lo. Ele afirmava que a criação é uma "expressão da vontade divina", e, portanto, deve ser respeitada e amada.


Na Encíclica Laudato Si (2015), o Papa Francisco resgata essa teologia franciscana ao falar da interconexão entre o ser humano e a criação. Ele afirma que a crise ecológica é uma crise espiritual, uma falha na relação entre o homem e a natureza, e conclama a humanidade a uma "conversão ecológica". Esse chamado ecoa diretamente a espiritualidade de São Francisco, que via a natureza como um presente de Deus a ser cuidado com reverência e gratidão. A teologia de São Francisco nos ensina que a criação não é algo a ser explorado ou dominado, mas amado e respeitado. Como diz o Sl 24,1: "Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele habitam."


4. A Humildade como Caminho de Santidade


A humildade é uma virtude central na vida e no pensamento teológico de São Francisco. Ele entendia que, para seguir a Cristo verdadeiramente, era necessário esvaziar-se de todo orgulho e vaidade, e reconhecer-se pequeno diante de Deus. Esse princípio é expresso na oração que ele compôs: "Senhor, fazei-me um instrumento de vossa paz... que eu não busque tanto ser consolado quanto consolar; ser compreendido quanto compreender; ser amado quanto amar."


A humildade de Francisco é uma resposta ao exemplo de Cristo, que "não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (*Marcos 10:45*). Para ele, a grandeza humana não reside no poder ou no status, mas na capacidade de servir aos outros e colocar-se à disposição de Deus e da comunidade. O teólogo franciscano Guilherme de Ockham enfatiza que a humildade é essencial para a verdadeira sabedoria. Ele argumenta que o conhecimento de Deus só pode ser alcançado por aqueles que, como Francisco, reconhecem sua própria limitação e dependência da graça divina.


5. Fraternidade e Comunhão


A espiritualidade franciscana também coloca grande ênfase na fraternidade. Francisco entendia que a comunidade dos frades deveria ser um reflexo da comunhão trinitária, onde o amor entre as pessoas é uma expressão do amor de Deus. Ele não via a vida em comunidade como um fim em si mesma, mas como um meio para testemunhar o Evangelho e servir ao próximo. Em sua Regra, Francisco exorta seus irmãos a viverem em paz uns com os outros, sem buscar posições de autoridade ou domínio. Ele acreditava que a verdadeira fraternidade só poderia ser vivida em um espírito de igualdade e simplicidade, onde cada membro da comunidade é valorizado.


A comunhão fraterna é uma resposta ao mandamento de Jesus em Jo 13,34-35, "Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vos ameis uns aos outros. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros."


Podemos concluir que a teologia de São Francisco de Assis é uma teologia do seguimento radical de Cristo, centrada na pobreza, na humildade e no amor pela criação. Ela nos desafia a viver o Evangelho de forma autêntica, buscando uma profunda comunhão com Deus, com os outros e com o mundo natural. Francisco, ao abraçar a cruz de Cristo, encontrou a verdadeira liberdade, e seu testemunho continua a ressoar na Igreja e no mundo. A sua teologia, como bem resumiu o Papa Francisco em Laudato Si, é um convite a uma "conversão integral", que transforma não apenas nossa relação com Deus, mas também com o próximo e com toda a criação.


A mensagem franciscana, alimentada pelas Escrituras e desenvolvida pelos grandes teólogos da Ordem Franciscana, nos chama a viver em simplicidade e amor, em comunhão com todos os seres, como reflexos do Criador. Que essa espiritualidade continue a inspirar novas gerações a buscar a paz, a justiça e a integridade da criação.



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São Francisco de Assis. Testamento de São Francisco. In: Fontes Franciscanas e Clarianas. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

São Boaventura. Itinerário da Mente para Deus. São Paulo: Paulus, 2006.

Scotus, João Duns. O Princípio da Individuação. São Paulo: Paulus, 2009.

Ockham, Guilherme de. Diálogos. São Paulo: Paulus, 2010.

Papa Francisco. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2015.

Papa Francisco. Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.

A Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2018.

BOAVENTURA, São. A cristologia franciscana. In: O Verbo Encarnado. São Paulo: Paulus, 2005. p. 98-120.

MEYER, João. A teologia de São Francisco. In: Revista Teológica. São Paulo: Paulus, 2010. p. 45-65.

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